"Se alguém quer ser o primeiro será o último e servo de todos."
(Marcos Cap. 9 Vers. 35)
Naufrago da vida, que a velhice conheceu acompanhado apenas do vício da embriaguez, de seu nem o nome tinha, piquiá, piquiá, piquiá... Era assim que lhe tratavam alguns galhofeiros em busca de aumentar-lhe os tormentos. Motivo de mofa e risos para muitos embusteiros que se satisfaziam ao ver-lhe perdendo a serenidade, procurando alguma pedra para fazer rebolo, revidando a afronta. Mas não fora sempre assim, nascido à 1° de Setembro de 1943, chegara ao Iguatu acompanhando seus pais, o Sr. Raimundo Ferreira e a Senhora Maria Guedes, juntamente com mais seis irmãos, vinham do Assaré, fixaram residência na barra e ali passou a juventude e a maturidade, trabalhando na agricultura, teve mulher, filhos e até um nome, José Ferreira Guedes. Mas isto é lá de outros tempos, quando o vício da embriaguez ainda não imperava nele, fazendo-o perder tudo. Bom, agora estava ali, na sarjeta, morto a pauladas, feito um bicho.
Era madrugada ainda, quando a Sra. Maria Nonata passou na minha calçada, vinha só, chorando alto, os cabelos em desalinho, estava inconsolável. Pedi que sentasse, ofereci-lhe um café, perguntei a causa de tanto desespero.
- Mataram meu tio, lá no Prado, tadinho, um pobre velho, não fazia mal a ninguém!
- Qual o nome dele?
- O senhor sabe, a gente da casa chamava de tio, mas o povo aí fora chamava de Piquiá, Zé Piquiá.
Foram estas palavras os únicos lamentos que chegaram aos meus ouvidos sobre o assassinato desse ancião de 64 anos, que teve a vida arrancada por um menor. Em um Iguatu em luta contra a violência, acreditava haver mais um levante das instituições, dos setores organizados de nossa comuna, como Igreja, Maçonaria, entidades estudantis, contra esta barbárie, afinal era o assassinato de um velho por uma criança e com requintes de crueldade. Eu mesmo, diversas vezes, havia lançado o meu protesto em crônicas que seguiam sempre o acontecido, como:
CENTAURO: Após a chacina dos animais na Varjota pelo delegado.
PROFETA: Após o assassinato dos dois jovens irmãos, filhos de Mombaça. pelo capitão.
CANGACEIROS: Após a morte da vereadora Edite Barreto.
LUCAS EMMANUEL: Após o latrocínio que teve como vítima o estudante.
Afinal a nossa luta era contra a violência. O silêncio que se seguiu a este crime, sem nenhum tipo de manifestação da sociedade, sem cobertura da imprensa da capital, que nos últimos três meses haviam transformado o Iguatu em um pudim de sangue. Fez-me sentir uma verdadeira ojeriza por esta sociedade contemporânea, afinal, assim ela provou que nunca esteve em luta contra a violência, que o UPA que se fez nos crimes anteriores era porque ela, a violência, havia ferido os "grandes", Piquiá não, Piquiá era pequeno. Respeitando aqui, a dor extrema dos pais que tiveram seus filhos arrancados do seu convívio, quando mais a vida lhe parecia farta, e por não concordar com tanta hipocrisia desta sociedade capitalista em que vivemos que aqui lanço o meu protesto:
Grito!
Ao sondar minha dor, qual se chora.
Pedi: "Cristãos, vede meu mal traiçoeiro?"
Mas os homens sem fé no mundo inteiro
Ver não quiseram minha sorte amarga.
Cheio de nojo, procurei um ara
E implorei: "Homens de honra, a mim primeiro?"
E, de tanto fingido cavaleiro
Nenhum, para me ouvir, volveu a cara.
"Filantropos - Clamei - predicadores,
Moralistas, filósofos, doutores
Consolai o meu íntimo desgosto."
Não se ouviu meu gemido suplicante
Gritei: "Canalhas!", e no mesmo instante
Todo mundo me olhou, voltando o rosto"
Tenho dito
Cícero Correia Lima
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