Legítimo de Braga
Facultas medicina... Facultas terra
Ah! Ah! Ah
Isso não pode ser
Pois vindo a bailarina
Não se pode nem morrer!
O fato referido
Se passou no Iguatu
Onde o padre Zé Coelho
Quis fazer-se de urubu!
Hoje, 07 de Fevereiro de 2022 é um dia ansiosamente esperado
por toda classe estudantil, entrincheirada a quase dois anos no interior de
suas residências, lutando contra um inimigo comum, uma nova “bailarina”, a
covid-19, que neste período já ceifou a vida de mais de seiscentos mil
brasileiros, obrigando-os a adequarem-se a um sistema de aulas online, que não
possuem o calor humano necessário ao surgimento das brincadeiras, camaradagem,
amizades, nascidas no interior de uma sala de aula e que os darão vivências,
recordações e amigos que perdurarão ao longo da vida de muitos deles.
Compromissado com este momento, levantei cedo, acordei meu filho José às cinco
e meia, às seis e meia descemos as escadas do apartamento onde moramos, subi as
portas de ferro do prédio no térreo, coloquei na calçada duas cadeiras e
esperamos. Dez minutos depois passou o ônibus que o levou para a faculdade da
terra, o Instituto Federal (IFCE), que fica localizado nas Cajazeiras. Vi meu
filho embarcar satisfeito com aquele reencontro, seguiram felizes.
Eu fiquei a meditar com meus botões, vendo as facilidades do
hoje e as dificuldades do ontem, fechei os olhos e me vi no crepúsculo do
século XIX, início do século XX, estava na fazenda Cipó, diante do seu
proprietário, o Sr. João Batista de Oliveira, ao seu lado sua esposa Rosa Maria
chora abraçada ao jovem filho Emanoel, beija-o, acaricia-lhe os cabelos, dá-lhe
os últimos conselhos, a benção e uma despedida. Um pouco mais afastado, dois
burros, um com uma cangalha com dois caçuás, com as malas, livros, um alforjes
com carne seca e mantimentos diversos, o outro com sela e arreios trabalhados e
de fino gosto, espera o seu ocupante. À sombra de um juazeiro cinco cabras
montados a cavalo, armados com facas e lazarinas esperam ordens, foram
escolhidos a dedo pelo pai, seriam responsáveis pela segurança do filho na
jornada deste até Fortaleza, onde pegaria um navio com destino a capital da
república, o Rio de Janeiro, onde cursava a faculdade de Medicina. Neste
primeiro momento a estrada era o rio Jaguaribe, depois rio Trussu, algum riacho
seco, ou veredas abertas pelo gado, até encontrar-se com as trilhas da ferrovia
da RVC (Rede de Viação Cearense), que já rasgava os sertões em nossa direção,
ali embarcaria na Maria Fumaça, terminando assim a missão e responsabilidade
daqueles valentes como as armas. Antes de montar no burro, para começar a
viagem, recebe a benção do pai e este conselho:
- Siga Emanuel, e em qualquer situação mostre quem é o filho
do seu pai.
Sem querer mergulhar até Esculápio, pai da medicina, aluno do
centauro Quíron que o instruiu através da observação no conhecimento da
medicina natural, empírica medicina usada na prática, imposta pela necessidade,
na ausência dos letrados, dos formados, dos doutorados, até por nossos
cangaceiros quando feridos por “lambedeiras”, armas de fogo ou estrepadas em
tocos e até em partos muitos destes realizados em meio a uma chuva de balas da
polícia, necessidade que fez surgirem outros “doutores” em nossa terra, como
dona Maelete, com suas abençoadas mãos realizando aproximadamente 4.000 partos.
Dona Mercê, outra abençoada parteira de nossa terra, sem esquecer seu esposo, o
“doutor” do bairro Tabuleiro, Chico Enfermeiro.
Necessidade vista pelo herói da Banda Oriental, José Artigas
que facultou terra ao povo na primeira reforma agrária da América Latina: “...
Seguiram Artigas, lança na mão, os patriotas. Em sua maioria eram camponeses pobres,
gaúchos rudes, índios que recuperavam na luta o sentido da dignidade, escravos
que ganhavam a liberdade incorporando-se ao exército da independência. A
revolução dos cavaleiros pastores incendiava a pradaria... O povo em armas
fez-se povo em marcha; homens e mulheres, velhos e crianças, abandonavam tudo
no rastro do caudilho, uma caravana de peregrinos sem fim. No Norte, junto ao
rio Uruguai, acampou Artigas com a cavalhada e as carroças, e no norte, pouco
depois estabelecia seu governo...”
“Que acham que eu vi?” Narrava um viajante Inglês, “excelentíssimo
senhor protetor de metade do novo mundo estava sentado numa cabeça de boi,
junto de um fogo aceso no embarrado piso do seu rancho, comendo carne de espeto
e bebendo gim num chifre de vaca! Rodeava-o uma dúzia de oficiais andrajosos”.
... De todas as partes chegavam a galope soldados, ajudantes
e exploradores. Caminhando com as mãos às costas, Artigas ditava os decretos
revolucionários de seu governo. Dois
secretários tomavam nota. Assim nasceu a primeira reforma agrária da América
Latina em 1815. Uma resposta revolucionária à necessidade nacional de recuperação
econômica e de justiça social. Decretava-se a expropriação e a partilha das
terras dos “maus europeus e piores americanos” emigrados por causa da revolução
e não indultados por ela. Confiscava-se a terra dos inimigos sem qualquer
indenização, e aos inimigos pertencia, dado importante, a imensa maioria dos
latifúndios; os filhos não pagavam pela culpa dos pais: O regulamento lhes
oferecia o mesmo que recebiam os patriotas pobres. As terras eram partilhadas
de acordo com o principio de que “os mais infelizes seriam os mais
privilegiados ‘’. Na concepção de Artigas, tinham os índios “o principal
direito’’. Terra livre, Homens livres!
Os sonhos do sonhador são impossíveis, uma pátria de Homens
livres não era do interesse britânico e logo o governo de Buenos Aires e o
governo do Rio de Janeiro coordenaram a queda deste valente. Os grandes latifúndios
e suas oligarquias subservientes ao capital estrangeiro prevaleceram em toda
América Latina. No sertão nordestino a estrutura social firmada no tradicional
domínio da violência fomentava o isolamento com os grandes centros, a falta de
instrução no povo, orquestrando um atraso que destruía o sentimento de
liberdade, de auxilio ao próximo, de caridade, de respeito a família, forçando
este espoliado povo a buscar nesta mesma violência a solução para suas mazelas.
Nascia ai, o cangaceiro, antes um brasileiro, um sertanejo em busca da
liberdade dada pela terra, dignidade que lhe foi tirada, quando lhe negaram a
reforma agraria, não lhe facultando a terra.
Este orquestrado atraso imposto pelas oligarquias locais é
bem visível em dois momentos, o primeiro deles, a ferrovia, obra do governo
federal que aqui chegou em 1910, trazendo toda uma expectativa de progresso,
mas que, quinze anos depois, em 1925, ainda não havia sido construído pelo
poder público municipal um quilômetro de estrada carroçal por onde nosso
agricultor pudesse escoar sua produção para os grandes centros comerciais, toda
mercadoria carregada pelos vagões eram trazidas no lombo de burros como a
duzentos anos passados, um outro, os canais de irrigação do campo Fenelón Lima
no Quixoá, vila operária Valdemar de Carvalho no Gadelha, Fomento Agrícola,
canais de irrigação do Bugi construídos durante o governo de Getúlio Vargas,
obras com não mais de setenta anos, hoje completamente abandonadas, em ruínas.
Demonstrando assim, estas oligarquias centenárias não terem nenhum compromisso
real com nossa economia, nossa cultura e nossa história, e se o tem, é o
compromisso do urubu.
O filho honrou o pai, voltou médico em 1905, Dr. Emanoel
Batista de Oliveira, primeiro médico do nosso Iguatu. Sem tirar os méritos
desta família, quero lembrar as milhares de outras famílias sertanejas que
sonharam em um dia formarem ao menos um de seus muitos filhos em médico, mas
foram impossibilitados disto, por não terem cinco ou seis tarefas de terra,
onde pudessem construir sua casa e plantar sua roça, num efetivo programa de
reforma agrária.
Bem vinda seja, pois, a faculdade de medicina, nesta
administração Ednaldo Lavor!
Bem vinda! Bem vinda sempre! A liberdade que gozamos nestes
cinco anos de administração Ednaldo Lavor!
E que a liberdade que nos foi facultada juntamente com a
faculdade de medicina, nos traga condições econômicas para que seja facultada
terra ao nosso povo.
Tenho dito
Cícero Correia Lima
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