A Professora da roça
Há seis ou sete anos obteve grandes aplausos, e foi objeto
de simpáticos e numerosos comentários, a ideia de erigir-se, no Rio de Janeiro,
um monumento a Mãe Preta, cujos braços envelheceram e nunca se fatigaram, de
embalar o filho do branco, e que privaram do leite o próprio filho para
amamentar o filho do seu senhor. A lembrança era, porem generosa demais, para
passar da imaginação a realidade. E como a dívida era mais da raça do que da
geração, a nossa geração a deixou para ser liquidada pelas que vierem depois,
resultando, certamente, dai, o seu adiamento perpetuo. Os povos, como os indivíduos,
são sempre maus pagadores de contas velhas.
Divida mais sagrada,
ou, pelo menos tão sagrada quanto essa, é, talvez, a que o brasileiro da
cidade, o espírito urbano do nosso tempo, tem a saldar com a mestre-escola da
roça, a professora de primeiras letras que exerce o seu apostolado,
anonimamente, há quatro séculos, nos arraiais e povoados. A mãe-preta, se não
teve a sua estatua monumental, foi, e continua a ser, celebrada pelos homens de
letras, no romance e no verso. Quem fala, porém, com reconhecimento, ou mesmo
com respeito, ou, sequer, sem respeito nenhum, na pequena e obscura professora
do Sertão?
E, no entanto, é ela,
pode-se dizer, o adubo singelo da árvore, boa ou má, da nossa democracia. Onde
se acha o eleitorado brasileiro, a multidão de votantes que elegia os
estadistas do Império e da primeira Republica e elegerá, bem ou mal, os
deputados e presidentes de amanhã? Está nas vilas, nos povoados, nos miúdos
centros da população espalhados pelo Brasil inteiro, e que, reunido, formavam e
formarão, com esse elemento eleitoral, a grande força politica da nação. E quem
prepara esse eleitor? Quem semeia o trigo do alfabeto nesses cérebros virgens
de trato humano, para que ele se transforme no futuro no pão de uma ideia, de
uma vontade, de uma opinião? É a mestre-escola sertaneja; é a professora da
roça; é a colaboradora humilde da grandeza nacional, que, nos pequenos e
tranquilos núcleos do Brasil brasileiro, toma conta dos filhos do lavrador, do
vaqueiro, do pescador, em quanto o pai, a enxada ao ombro, a rédea a mão, vela
ao vento, procura na terra amiga ou no mar agitado, o sustento de cada dia!
É preciso ter viajado
os remotos sertões, ou as praias inacessíveis, do norte e do centro, para
compreender e admirar a mestre-escola, e a obra patriótica e anônima que ela
realiza. Geralmente, é professora particular. Uma vez ou outra, vai a seu
encontro o Estado, oferecendo-lhe uma subvenção insignificante, paga sempre com
atraso, e às vezes acumulada durante meses para ser negociada com os agiotas da
cidade mais próxima. Na maioria dos casos, porém, vive das mensalidades que lhe
pagam, os pais que podem pagar, e que não atingem, em alguns lugares, a três
mil reis por aluno.
E as instalações dessas escolas são comovedoras na sua
primitividade. Conheci uma, no povoado de Morros, no Piauí, a qual coberta de
palha e cercada de troncos de carnaúba, trazia o chão de barro batido e possuía
para os alunos bancos de tronco de carnaubeira, rachados ao meio. Mas
funcionava, e tinha frequência sem o menor auxilio oficial. E outra em
condições ainda mais precárias. Eu viajava em torno á baiá da Tutóia, no
maranhão, quando cheguei, á cavalo em companhia de um parente, o engenheiro Álvaro
Veras, ao arraial de Carnaubeiras, no delta do Parnaíba. Anoitecia. Procuramos
uma casa para nos hospedar e fomos levados a uma de palha e cercada de carnaúba
como a de Morros. Apenas, não tinha portas e o chão era de areia solta.
A nossa chegada, acompanhados
pelo cabloco prestimoso que nos ia armar as redes, fugiu da casa um porco, que
ali dormia. Outros foram expulsos á força e uma cabra, com os seus cabritos. Noite
escura e fresca. Pela manhã, erguemo-nos, para continuar a viajem.
- Sabes que casa é
esta, em que dormimos? – Perguntou-me o meu parente
E a minha resposta negativa:
- Isto aqui é a escola... Uma escola particular... Neste
buraco há gente que sabe ler...
Comoveu-me a noticia.
E nunca mais me saiu da lembrança,
envolta por uma névoa de gratidão e de simpatia, a escola de Carnaubeiras.
Aí, nessas oficinas
sem dístico, preparam-se trabalhadores
cidadãos para o Brasil. E a artífice, a lapidadora do diamante bruto, é a
mestre-escola, a mestre da roça, a obscura professora do sertão.
Admiremos, pois, essa
heroína. E celebremo-la.
H.C.
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