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5 de fev. de 2019

A Professora da roça

Há seis ou sete anos obteve grandes aplausos, e foi objeto de simpáticos e numerosos comentários, a ideia de erigir-se, no Rio de Janeiro, um monumento a Mãe Preta, cujos braços envelheceram e nunca se fatigaram, de embalar o filho do branco, e que privaram do leite o próprio filho para amamentar o filho do seu senhor. A lembrança era, porem generosa demais, para passar da imaginação a realidade. E como a dívida era mais da raça do que da geração, a nossa geração a deixou para ser liquidada pelas que vierem depois, resultando, certamente, dai, o seu adiamento perpetuo. Os povos, como os indivíduos, são sempre maus pagadores de contas velhas.
 Divida mais sagrada, ou, pelo menos tão sagrada quanto essa, é, talvez, a que o brasileiro da cidade, o espírito urbano do nosso tempo, tem a saldar com a mestre-escola da roça, a professora de primeiras letras que exerce o seu apostolado, anonimamente, há quatro séculos, nos arraiais e povoados. A mãe-preta, se não teve a sua estatua monumental, foi, e continua a ser, celebrada pelos homens de letras, no romance e no verso. Quem fala, porém, com reconhecimento, ou mesmo com respeito, ou, sequer, sem respeito nenhum, na pequena e obscura professora do Sertão?
 E, no entanto, é ela, pode-se dizer, o adubo singelo da árvore, boa ou má, da nossa democracia. Onde se acha o eleitorado brasileiro, a multidão de votantes que elegia os estadistas do Império e da primeira Republica e elegerá, bem ou mal, os deputados e presidentes de amanhã? Está nas vilas, nos povoados, nos miúdos centros da população espalhados pelo Brasil inteiro, e que, reunido, formavam e formarão, com esse elemento eleitoral, a grande força politica da nação. E quem prepara esse eleitor? Quem semeia o trigo do alfabeto nesses cérebros virgens de trato humano, para que ele se transforme no futuro no pão de uma ideia, de uma vontade, de uma opinião? É a mestre-escola sertaneja; é a professora da roça; é a colaboradora humilde da grandeza nacional, que, nos pequenos e tranquilos núcleos do Brasil brasileiro, toma conta dos filhos do lavrador, do vaqueiro, do pescador, em quanto o pai, a enxada ao ombro, a rédea a mão, vela ao vento, procura na terra amiga ou no mar agitado, o sustento de cada dia!
 É preciso ter viajado os remotos sertões, ou as praias inacessíveis, do norte e do centro, para compreender e admirar a mestre-escola, e a obra patriótica e anônima que ela realiza. Geralmente, é professora particular. Uma vez ou outra, vai a seu encontro o Estado, oferecendo-lhe uma subvenção insignificante, paga sempre com atraso, e às vezes acumulada durante meses para ser negociada com os agiotas da cidade mais próxima. Na maioria dos casos, porém, vive das mensalidades que lhe pagam, os pais que podem pagar, e que não atingem, em alguns lugares, a três mil reis por aluno.
E as instalações dessas escolas são comovedoras na sua primitividade. Conheci uma, no povoado de Morros, no Piauí, a qual coberta de palha e cercada de troncos de carnaúba, trazia o chão de barro batido e possuía para os alunos bancos de tronco de carnaubeira, rachados ao meio. Mas funcionava, e tinha frequência sem o menor auxilio oficial. E outra em condições ainda mais precárias. Eu viajava em torno á baiá da Tutóia, no maranhão, quando cheguei, á cavalo em companhia de um parente, o engenheiro Álvaro Veras, ao arraial de Carnaubeiras, no delta do Parnaíba. Anoitecia. Procuramos uma casa para nos hospedar e fomos levados a uma de palha e cercada de carnaúba como a de Morros. Apenas, não tinha portas e o chão era de areia solta.
 A nossa chegada, acompanhados pelo cabloco prestimoso que nos ia armar as redes, fugiu da casa um porco, que ali dormia. Outros foram expulsos á força e uma cabra, com os seus cabritos. Noite escura e fresca. Pela manhã, erguemo-nos, para continuar a viajem.
 - Sabes que casa é esta, em que dormimos? – Perguntou-me o meu parente
E a minha resposta negativa:
- Isto aqui é a escola... Uma escola particular... Neste buraco há gente que sabe ler...
 Comoveu-me a noticia. E  nunca mais me saiu da lembrança, envolta por uma névoa de gratidão e de simpatia, a escola de Carnaubeiras.
 Aí, nessas oficinas sem dístico, preparam-se  trabalhadores cidadãos para o Brasil. E a artífice, a lapidadora do diamante bruto, é a mestre-escola, a mestre da roça, a obscura professora do sertão.
 Admiremos, pois, essa heroína. E celebremo-la.
H.C.







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