MARIA BRAGA DA SILVA
Fecho os meus olhos e ainda sinto o cheiro de manga rosa, invadindo o vagão onde estava eu, papai, mamãe e os meus oito irmãos, famintos, esquálidos, na chegada a Estação Ferroviária da cidade de Baturite, no alto daquela serra. Vendedores se atropelavam na tentativa de exporem suas mercadorias, aos gritos:
_ Olha a uva! Compra o abacate freguês!
_ Abacaxi, tangerina, pinha! Quem vai querer!?
Papai comprou três pinhas grandes, maduras, doces, saborosas. Mamãe dividiu-as entre nós. Fugíamos a miséria e a fome, mas carregávamos, dentro de cada um, o sonho de um dia, poder voltar para casa. Sonho este, que era negado a todo instante, pela locomotiva que gritava, insistente:
_ Volta não, volta não, ...
_ Volta não, volta não, ...
_ Volta não, volta não, ...
_ Mamãe a senhora estar chorando!? Porque?
_ Minha filha, eu estou chorando de fome. Sua mãe vai morrer de fome, filhinha.
Minha mãe era tudo que eu tinha, sai em busca de alimento para ela. Primeiramente, desci a ladeira do rio Jaguaribe, que dar acesso ao sitio Araras, em tempos mais felizes podia contar com a fateira Barbara e suas três filhas, Mocinha, Laíde e Chiquinha que lavavam os fatos do gado abatido na rua da Matança ( Rua 12 de Outubro com Rua Antonio Mendonça ). Sempre que a buscava, ela enchia a minha cuia com vísceras, enquanto afirmava brincalhona e orgulhosa:
_ Você tá falando e com Barbara, mulher de “Bigode”, irmão do “ Cavanhaque”.
Naquele momento porém, o leito do rio estava completamente seco, todas as minhas esperanças se resumiam a encontrar alguns frutos nos Juazeiros e Mutambeiras fincados a margem do rio. Se consegui - se êxito, poderia levá-los para casa, onde a mamãe espremeria os Juás e misturaria com o pó das mutambas, preparando um suco que encheria nossas barrigas. Infelizmente, não éramos os únicos flagelados pela seca, não encontrei juá, nem verde. Em desespero, decidi seguir ate a Estação Ferroviária, esperar a chegada do trem, onde acreditava conseguir alguma ajuda. Quando a locomotiva que vinha do Crato, parou, trazia os vagões repletos de vultos esquálidos, desalentados retirantes, famintos, que fugiam do sertão, no rumo de Fortaleza a procura de alimento, trabalho, acolhimento para suas necessidades. Decepcionada e cabisbaixa segui sozinha os trilhos na direção de casa, quando repentinamente, topo com um senhor que vinha no meio dos trilhos em direção contraria. Já sem forças, joguei – me de joelhos, aos seus pés:
_ Meu senhor! Pelo amor de Deus, me de uma esmola, para eu não morrer de fome!?
_ Você não tem pai?
_ Nem pai, nem mãe!
Naquele momento menti, mas tive medo de sabendo ele, eu ter pai e mãe, decidi que eu não precisava de esmola. Deu - me umas moedas, corri a um restaurante no centro da cidade, onde um homem com chicote na mão, afastava os flagelados, que ousassem tentar no mesmo. Mostrei-lhe as minhas moedas, enquanto exclamava vitoriosa:
_ Eu tenho dinheiro! Eu tenho dinheiro!
Matei minha fome e levei comida para mamãe.
Meu pai era um Homem alto, magro, branco, rosto meio fino, brabo que só ele, chamavam-no por “ Chico Braga “, conhecia os ofícios de pedreiro e carpintaria, mais nem isso impediu que a miséria invadisse e se alojasse dentro de nossa casa. Numa tarde daquele ano de 1943, papai chegou em casa cansado de esperar pelas chuvas, a seca era muito cumprida, o Presidente da Republica Getulio Vargas, havia aberto oportunidade de todos escaparem da morte certa, o trem passava todo dia no Iguatu, carregando um mar de farrapos. Contavam que em Fortaleza receberiam remédios, alimentação, vestimenta, rede, medico e depois de algum tempo, seriam embarcados em navio da Lorde, com destino ao Amazonas, onde teriam uma nova chance de vida, com muito trabalho e sacrifício. A lua já ia alta no céu, papai contava dos seus sonhos, enquanto esperava o Aracati, a fome torturava a todos nós, com lagrimas nos olhos ele nos observava, sentados ali no quintal na sua frente, o José, a Isaura, a Francisca, o Antonio, o Dogival, o Adonias, o Luis, a Tereza e eu, a caçula Maria, Maria Tereza. Foi com uma voz rouca arrancada, a muito custo de sua garganta, que ele anunciou inflexível:
_ Dona Maria Rita, arrume as trouxas dos nossos filhos, que nós vamos embora desta terra.
Nasci a 24 de Outubro de 1934, tinha 9 anos quando deixamos para traz o nosso Iguatu, mas nenhuma tesoura corta de verdade o cordão umbilical. Lembro que em tempos mais felizes, mamãe trepava em cima de um giral a qualhada, para temperar a comida. Um dia, derrubei o pilão, rolei o mesmo ate o giral, alcancei a qualhada e comi ela toda. Quando mamãe descobriu, disse que iria me dar uma surra. Corri para não apanhar. Mas a noite, o medo do Aracati, me trouxe de volta. Não tive como evitar a pisa. No dia da partida, passamos lá no comercio do tio Correinha, para nos despedir dele, lembro que ele colocou dentro de um saco, rapadura e jerimum e entregou ao meu pai.
O governo Federal com o Getulio Vargas a frente, bancou as despesas, o bom e misericordioso Deus bancou nossas vidas, apesar da malaria, do risco dos submarinos alemães bombardearem os navios brasileiros em nossa costa, chegamos todos vivos em Manaus, éramos onze. Mamãe logo começou a trabalhar numa fabrica de castanhas, papai foi trabalhar na construção da Escola Normal, hoje, Instituto de Educação do Amazonas, meu irmão mais velho o José Braga da Silva, foi trabalhar num seringal, os mais novos faziam outros trabalhos como abastecer, carregando água num galão sobre os ombros, as casa dos mais afortunados. Eu com idade de 14 primaveras, fui trabalhar no Hospício, Hospital Psiquiátrico Eduardo Gomes. Com o tempo papai construiu, com nossa ajuda, uma casa grande, com dois andares, coberta de palha, onde todos permanecemos unidos. Mas todos sonhávamos em um dia voltarmos a nossa terra. O José Braga nunca perdeu o contacto, ele se comunicava com o Edmilson Braga aqui no Iguatu, morreu sem concretizar o seu sonho. Mas eu voltei!
Cícero Correia Lima.
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